MAGIA INDIANA E MAGIA CIGANA


“O homem sem domínio sobre a sua mente e seus sentidos é como um navio à mercê das ondas.” Krishna



Talvez o que explique o fascínio irresistível que a Índia desperte em toda a Humanidade (destacamos o frígido Ocidente), se deva ser ela o último grande foco da mais antiga, a mais autêntica espiritualidade.

A península indiana isola-se do resto do continente asiático tento ao Norte a cadeia de montanhas do sagrado Himalaia e o vale do rio Ganges. Alvo constante da cobiça de vários conquistadores pela fertilidade de suas terras, a Índia foi sucessivamente invadida pelos exércitos arianos, persas, gregos, turcos, afegãos, mongóis, holandeses, dinamarqueses, franceses e ingleses desejosos de suas enormes riquezas tornando-a, dessa forma, foco de constantes conflitos étnicos, político-culturais que entravaram-lhe o progresso econômico concedendo-lhe o ar de mero “mercado” ou, mais simplesmente, fornecedor de matérias-primas brutas aos países industrializados. Contudo, por todas essas razões essa nação sofredora conciliou seu desamparo com uma coerência religiosa ímpar. Eis a Índia, país essencialmente de contrastes, aonde o ocidental desavisado não consegue compreender porque esse país tem o maior rebanho bovino do mundo e passa fome, tendo unicamente como fonte protéica os poucos peixes disponíveis para alimentar sua vasta população. Temos o péssimo hábito de crer não ser possível alguém pensar diferentemente de nós. Se pudéssemos subir uma montanha muito alta, vislumbrando todo o horizonte, veríamos que a Humanidade é toda igual, com hábitos e anseios similares uns aos outros. Perderíamos essa petulante tendência ao preconceito, de visão estreita, de crer-se donos da verdade. Sermos os privilegiados, o “povo”, a “religião” de Deus. Precisaremos despir, a cada capítulo pela frente, nossos bairrismos na tentativa de perceber que todos nós temos a mesma crença, absolutamente igual, revestida apenas com outras linguagens e simbolismos. E a Umbanda como religião universalista que é, precisa ter em seus adeptos a consciência disso para possuir inclusive, segurança na execução de seus rituais na certeza que estará resgatando, a cada pequeno detalhe, conceitos doutrinários de valores permanentes enquanto seres humanos que somos.

A partir de agora, vamos tentar fazer um passeio mental pelas estreitas ruas indianas, ouvir-lhe a aparente confusão de sons, seu congestionamento, seus cheiros das fortes especiarias, suas mulheres de longos narizes e tez cor-de-terra tão semelhantes às ciganas que percorrem nossas avenidas com idênticas roupagens de saias longas com cores vibrantes. A Índia é um museu vivo, mantido por milênios a fio com seu langor, resultado de um clima úmido e quente; seu gado deitado, plácido a ruminar pelas calcadas. Sua formação pacífica e agrícola. Povoada desde o Paleolítico com tribos aborígenes, em 2500 AC foi invadida por nômades pelo Norte que buscavam seus vales férteis, cansados de viver sobre solos áridos, rochosos, de poucos recursos. Construíram cidades rudimentares com tijolos, grandes celeiros, artesanato de cerâmica, ferramentas de pedra ou de madeira. Duas cidades destacaram-se logo em seguida, desenvolvendo-se enormemente à semelhança das sumerianas: eram Harapa e Mohenjo-Daro. A modernidade dessas cidades assombra nosso tempo, quando muitas de nossas modernas metrópoles não têm ainda todos esses recursos disponíveis: tinham água canalizada, casas de banho, sistema municipal de esgoto, coleta regular de lixo, casas feitas de tijolos, celeiros sofisticados que permitiam condicionar grãos por longos períodos, ourives habilidosos, comércio e uma administração invejável. Tinham, pelos comparativos, contato com os povos da Suméria absorvendolhes os mitos de santos-heróis, animais míticos, culto à deusa-mãe, figueiras sagradas, deuses fálicos. Semelhante aos egípcios, enterravam seus mortos cercados de bens crendo em sua sobrevivência e necessidades ainda materiais após a morte. Em 1100 AC, a Índia foi invadida por um grupo de guerreiros de pele branca, contrastando com seus moradores de pele escura, instalando-se ao Norte do país. Era um povo altivo, proveniente da região de Pamir segundo alguns estudiosos, intitulando-se a si mesmo de Árias, “Os Nobres”, donos de uma complexa filosofia religiosa. Sabido é que os Árias influenciaram a religião de diversos povos, talvez pelo seu inquieto nomadismo, incluindo-se as civilizações semíticas da Mesopotâmia e Pérsia (Irão), do Egito, da Fenícia e, posteriormente, a gregos, romanos, celtas, germanos e eslavos, todos com pontos em comum tipicamente arianos. Destacaram-se como principais responsáveis pela formação religiosa, cultural, filosófica e na temática dos mitos e contos populares na Índia, Ásia, Europa e norte da África (quem sabe, supomos, chegando até a Nigéria e países circunvizinhos), visível no maniqueísmo judaico/cristão, a presença de uma Virgem-Mãe (item freqüente nos mitos arianos), a existência de semideuses nascidos sob circunstâncias miraculosas, orgulho racial de seus descendentes impostos pela sua passagem nessas nações. Nada é absolutamente certo, porém podemos citar itens constantes nas mitologias influenciadas pelos Árias já que não é novidade alguma trazida por nós, os mitos que cercam a própria figura de Jesus que teria sofrido uma releitura pelos “evangelistas” para torná-lo mais atraente aos olhos do povo ainda preso às fantasias, melhorando a sua imagem de simples filho de carpinteiro. Procurando tornar mais transparente ao leitor nossas explanações, enunciaremos algumas características notáveis:

1. casamento dos deuses do Céu e da Terra gerando deuses, gigantes, seres primordiais. O casal divino sofre uma separação brutal, ríspida, definindo a partir daí as regiões celestes e terrestres antes misturadas;

2. aleitamento e criação dos deuses e semideuses por animais sagrados, ninfas e lugares secretos pois seriam perseguidos na infância por inimigos;

3. no início dos tempos, guerras entre deuses e demônios/gigantes ordenando forças caóticas a partir da vitória dos primeiros;

4. forcas do bem em luta contra forças do mal, ambas de igual poder. Maniqueísmo e temor religioso em torno das forças do mal que precisam ser apaziguadas;

5. furto do fogo ou da beberagem dos deuses que confere a imortalidade;

6. união sexual de deuses e humanos gerando filhos divinizados ou heróis civilizadores. Disfarce do deus sob várias formas para a sedução (que nunca é explícita) e nascimento da criança cercada de fatos mágicos;

7. heróis (filhos de deuses) lutando contra monstros;

8. deuses que se sacrificam pela Humanidade, para a redenção da última. Ressurreição desses deuses após o sacrifício retomando seus cargos celestes ou assumindo novos de maior importância;

9. deuses-pastores relacionados ao culto da fertilidade;

10. deus do céu que costuma também ser deus do trovão;

11. céu sustentado por pilastras, animais mágicos ou seres;

12. trindades sagradas formadas por pai, mãe e filho;

13. virgens que dão à luz aos filhos dos deuses.

Anteriores ao surgimento de todos esses povos citados acima, segundo Emmanuel na psicografia de Francisco Cândido Xavier em “Evolução em Dois Mundos”, esses ferozes guerreiros sedimentaram a língua sânscrita compilando textos sagrados em livros intitulados Vedas (cujo conteúdo remete-nos à doutrina cristã ou grega no pensamento de Sócrates e Platão de forma surpreendente), Brâmanas (reunião de ritos, sacrifícios, conceitos) e, por fim, os Upanichades/Vedanta (filosofia do Hinduísmo e o ciclo das reencarnações-samsara). Leva-se em conta a antigüidade dos Vedas que foram completados como são hoje em 900 A.C., reunindo belíssimos hinos e orações, subdivididos em Rig Veda, Sama-Veda, Jajur-Veda e Atharva-Veda. Mas de todas essas obras sagradas aos hindus, o mais conhecido são os textos do Purana que aborda os mitos e lendas dos deuses contendo em si o Ramaiana e o Mahabaratha.

O primeiro trata das aventuras de Rama (ou Ramachandra), sétima reencarnação (avatar) do deus da abóbada celeste Vishnu, o grande conservador da ordem cósmica. Texto recheado de aventuras, Rama luta contra Ravana seu arquiinimigo, chefe abominável dos demônios, resgatando de suas garras a doce Sita (avatar da deusa Lacshmi) sua belíssima esposa, ajudado por um exército de macacos liderados pelo esperto Hanumat. À semelhança das histórias de Simbad, Hércules e tantos heróis que denunciam sua origem ariana, Rama é um super-herói enfrentando criaturas diabólicas com o fim de obter a esposa de volta, sendo feliz para sempre no final. Talvez em decorrência do romantismo e aventura cercando seu mito, receba tanta veneração e popularidade entre os hindus, até mesmo conferindo aos macacos o privilégio de templos recheados de guloseimas para saciarem a fome, com a liberdade mesma de circularem à vontade pelas ruas e moradias sem serem molestados. O moderno cinema, alimentando ainda mais os antigos mitos arianos presentes nos contos populares, cria sagas futuristas como “Guerra nas Estrelas” e tantas outras, aonde identificamos os mesmos personagens dos mitos milenares na velha luta do bem contra o mal fazendo delirar as platéias que sempre amaram a figura do “mocinho” versus “bandido”.

No livro Mahabaratha, subtítulo dos Puranas e traduzido como “A Grande Luta de Baratha”, encontraremos duzentos mil versos considerados elementos do maior poema épico da Humanidade. Seu tema são as alianças das tribos arianas do Norte e a rivalidade dos reis Arjuna e Carna, repetindo-se o tema do jogo como meio de divisão do Universo entre seus personagens (tema tipicamente ariano, encontrável em outros mitos como na religião grega). Mas o destaque fica no Bagavad-Gita, capítulo do Mahabaratha, aonde aparece Krishna (avatar de Vishnu) que mostra-se quem é durante uma batalha ao rei Árjuna, seu amigo. Como a maioria absoluta dos heróis arianos, Krishna teve um nascimento miraculoso e uma posterior “adoção” vivendo entre simples mortais para escapar da sua morte sentenciada pelo tirânico rei Cansa (nesse momento não podemos deixar de lembrar a perseguição de Herodes contra Jesus) vivendo modestamente entre pastores até aparecer em público (eis Jesus novamente, sendo criado como carpinteiro).

Quando auriga do rei Árjuna, viu seu soberano acovardar-se em pleno combate principiando a falar-lhe mostrando-se como um divino avatar, comungando com o Deus Supremo como força única a fluir em toda a Criação. Eis algumas de suas frases para termos pálida idéia da beleza de seus trechos: “Impossível a aquisição da sabedoria pela mente descontrolada; impossível a meditação para o homem inquieto. E se o homem não encontrar a paz dentro de si como pode ser feliz?” “Mas quem realiza o que deve ser realizado, sem se preocupar com a vantagem ou desvantagem que daí lhe advenha, esse age no espírito da sabedoria espiritual.” “Assim como o homem se despoja de uma roupa gasta e veste uma roupa nova, assim também a alma incorporada se despoja de corpos gastos e veste corpos novos.” “Mas quem permanece sereno e imperturbável no meio do prazer e sofrimento, somente esse é que atinge a imortalidade.” “Penetrado do espírito de yoga, ó príncipe, realiza os teus trabalhos e mantém-se em sereno equilíbrio, na certeza de que tanto o sucesso como o insucesso são bons. Essa serenidade interior é yoga.” “Na prática de yoga, nenhuma atividade redunda em perda, nem é possível uma aberração, nesse caminho; qualquer progresso, na yoga, por menor que seja, liberta o homem da ominosa rotina de nascer e morrer (samsara – ciclo das reencarnações).” “Quando o teu conhecimento se libertar de qualquer ilusão, então compreenderás a verdade daquilo que ouviste e ainda ouvirás, e te possuirás a ti mesmo imperturbavelmente.” “Quando alguém permanece calmo no meio de sofrimentos, quando não espera receber do mundo objetivo permanente felicidade e quando é livre de apego, medo e ódio – então ele é um homem de perfeita sabedoria.” “Quem conhece esse Uno conhece tudo o que existe; quem conhece muitas coisas, mas desconhece o Uno, esse na realidade não conhece nada – e o seu saber é simples produto mental.” “Obras de culto, de caridade e autodomínio não devem ser abandonadas, porque são meios para o homem se purificar.” “Quem deixa de fazer o que deve ser feito porque lhe é penoso e ingrato, esse procede egoisticamente; o que o impede a essa desistência é aberração mental.” Essa busca incessante de equilíbrio pleno enfrentando todos os revezes da vida, frutos da recomposição cármica do indivíduo, fez surgir as quatro Yoga (pronuncia-se iôga, “Caminhos de Libertação”) do Hinduísmo, a saber: Carma Yoga – prega manter-se puro dentro de sua casta, aceitando com serenidade suas obrigações e limitações sociais. Janana Yoga – prega o isolamento do mundo, abstenção, renúncia plena para atingir-se a Mocsa (libertação das reencarnações). Bacti Yoga - a mais popular da Índia. Prega deixar-se fluir normalmente pelos sentimentos e emoções, sob a adoração de um deus. Raja Yoga – a mais conhecida entre nós. Consiste em exercícios de postura, respiração e pensamento como formas de libertação. Tirando-se alguns comentários sobre alguns pontos de vista discordantes dos nossos presentes nas Yoga, o Hinduísmo prega a Ainsa (não violência) como única forma de relacionamento humano junto à toda a Natureza pois, sendo panteísta, não será possível praticar qualquer tipo de mal a um ser vivo ou comer a carne de um animal como hábito alimentar.

Crendo em tal conceito, um hindu jamais vai surrar um cavalo (ali poderá estar a alma reencarnada de um parente), comer das carnes de uma vaca (pelo mesmo motivo e um animal sagrado), pisar propositadamente em um inseto, cortar uma árvore, praticar os vandalismos típicos de um ocidental comum. Jamais provocará alguém para matá-lo, agredi-lo, roubá-lo, mentindo, traindo. Essa postura invejável de filosofia sublime (apesar de discordarmos do panteísmo) produz um caráter humanista, tão comum entre povos miseráveis materialmente falando, mas sempre respeitados pelos seus valores espirituais únicos. Discute-se o preceito das castas (ou varnas) privilegiando os descendentes dos Árias de pele mais clara que detêm o poder e o sacerdócio, contra a grande maioria de pele escura pré-dravídica muito mais antiga, submetidos a uma hereditariedade que não lhe permitirá ascender jamais aos privilégios da primeira, bem como uma aceitação religiosa sob uma doutrina reencarnacionista que em vez de libertar, oprime. Azar dos vencidos, já diriam os primeiros invasores Árias. Refazem-se preceitos bem fundamentados na lógica comum ao ser humano sob uma bandeira “religiosa” com fins de submeter uma grande maioria plácida, conformada. Não podemos criticar a postura de tantos filósofos políticos quando têm um discurso condenando tais mazelas, ao assistirem as bandeiras de uma pseudo-fé que tenta dominar toda uma sociedade com a velha cantilena dos governos teocráticos/sacerdotais de cima para baixo. Porém, como faz o outro extremo, ao renegar as verdades impressas sob tais discursos políticos revestidos de “palavra de Deus”, é tão desastrosa como a primeira. Toda e qualquer solução negando ou aceitando tudo “porque é assim desde o começo do mundo”, redunda em erro gravíssimo ao pensamento, tolhendo o fluir das idéias mais brilhantes sempre nascidas no ninho da liberdade do raciocínio pleno. No simbolismo ariano, os hindus reconhecem a trindade através das figuras de nara (o pai), nari (a mãe) e viradi (o filho, o Verbo-Criador). Poucos sabem que o “espírito-santo”, presente na doutrina cristã, era considerado um elemento feminino nas primitivas igrejas da Ásia e Europa. Na Índia encontramos respaldo nas figuras de Brahma, Vishnu e Shiva, a grande trindade cósmica, sendo o elemento assexuado a figura geradora do primeiro. Brahma lembra-nos a figura criadora, excelsa de Oxalá, ser masculino/hermafrodita, concentrando em si a força de todos os outros deuses com a paternidade divina. Gerador em potencial, nascido de um lótus que brotou do umbigo de Vishnu, é distanciado da Humanidade e cercado de uma filosofia religiosa tão refinada que apenas encontrou guarida na casta mais culta, a dos brâmanes, que apreendeu-lhe sua imaterialidade em comparação aos deuses hindus. Invocam-no no mantra OM TAT SAT entoado durante o recitar dos hinos védicos, nos sacrifícios, lembrando a todos que Deus é Uno e Todo-Poderoso. Vishnu em seus avatares (reencarnações), sob várias formas para a redenção da Humanidade, lembra-nos o Orixá Ogum pelo caráter aguerrido e força motriz impulsionadora às novas eras, ao mesmo tempo tentando manter a ordem da Criação.

Regente da manutenção das Leis Universais, conserva tudo o que deve se manter intacto ou preservado por eras determinadas. Vishnu é um antigo deus da abóbada celeste, daí representá-lo (bem como seus avatares) com a pele azulada que demonstra tanto sua origem divina quanto seu caráter atmosférico. Vishnu é o segundo deus mais popular da Índia obtendo grande culto pela crença em Rama e Krishna, venerado como deus ariano que é, como o grande redentor que sacrifica-se por misericórdia ao ser humano. Como guerreiro imponente, pelas antigas previsões dos sábios, virá como Calki - aquele que no final dos tempos expulsará os demônios. Shiva, o terceiro, é sem sobra de dúvida o deus mais popular e o menos compreendido aos olhos dos ocidentais puritanos. À semelhança de nosso Orixá Exu, é um deus fálico e senhor da fecundidade masculina. Seu símbolo é a linga, pedra cônica adorada como fonte de seu poder, lembrando em muito os otás/ocutás desse Orixá ou seus montículos de terra. Para o hindu, a união sexual entre dois seres é um ato sagrado, uma comunicação direta com Deus e sua força regeneradora, devendo ser empregado como um caminho de paz e comunhão divina; o prazer obtido também não é visto como “pecado” ou com culpa na religiosidade indiana. Para espanto dos primeiros europeus a pisar nessas terras, a iconografia religiosa mostra imagens de Shiva fundido à sua contraparte feminina, a deusa Parvati, sua esposa, em figuras hermafroditas que simbolizam justamente o equilíbrio entre essas duas polaridades regenerativas. Ou mesmo apresentam Shiva e Parvati unidos no ato sexual demonstrando a plenitude da felicidade espiritual e equilíbrio. Nesse simbolismo material, para uma realidade bastante abstrata, Shiva agrega em si a criação e a destruição simultaneamente, modificando as velhas formas carcomidas para dar o lugar ao novo, ao regenerado. Shiva, bem como nosso Exu, é temível e poderoso, invocado como o poder ativo do Universo que precisa ser realimentado e ordenado para não tornar-se caótico podendo até eliminar a Vida. Shiva também é o senhor da inexpugnável cadeia de montanhas geladas do Himalaia, asceta que ali em meditação busca nirvana, cercado de najas – símbolos da prudência, sentado sobre a pele de um tigre. Nesse aspecto representa a força represada, o encontro da ordem das energias dispersas mas que não poderão ficar inertes para sempre, senão o Universo deixará de auto-refazer-se.

Para tirá-lo da absoluta inércia somente um desequilíbrio nas polaridades, representado pelo ardor de Parvati, sua devotada e fiel esposa, chamando-o de volta às suas atividades como marido implorando-lhe amor. Representação simples para a complexa idéia de que uma única polaridade jamais será criativa por ela mesma, se assim fosse ficaria em repouso quiçá eterno.

Sua contraparte irá torná-la reprodutiva, capaz, potente, plena. Viram assim os hindus, na singeleza desse mito, a existência das polaridades magnéticas essenciais para o equilíbrio do Universo físico imprimindo posteriormente, na religiosidade chinesa, o mesmo conceito de dualidade. Shiva tem muitos atributos. Como destruidor de velhas formas é Nataraja, o dançarino cósmico cercado de labaredas de fogo, que no frenesi de sua dança debate-se contra mundos reduzindo-os a pó. É a divindade amorosa que desatou seus longos cabelos negros, marca registrada das elites hindus, permitindo escorrer pelas suas lustrosas madeixas as águas celestiais do Ganges (personificado pela deusa Ganga, a via láctea), saciando a sede da Índia a partir de então. Como o Orixá Exu, Shiva será dócil se pacificado fazendo os seres reproduzirem-se com plena saúde; será perigosamente, incontrolavelmente destruidor se desrespeitado. Coincidências de lado, mesmo tratando-se de sincretismo cristão de nossa parte quando nos referimos aos Exus de Umbanda ou das encruzilhadas de três pontas do Orixá, lá vemos Shiva também carregando um tridente na mão (trishula) - sua arma invencível - cujos três dentes remontam à representação das três gunas (qualidades ou atributos da vida material) ou, talvez, dos tempos passado, presente e futuro. Símbolo solar por excelência ou da energia tripla do Tantrismo na Índia, não poderíamos ignorar que alguns Exus mostram tridentes gesticulando com os dedos no mesmo gesto de trishulahasta, quem sabe demostrando com isso poder similar de domínio da matéria em seus aspectos reprodutivos/destrutivos. Lembrando a origem comum entre ciganos e hindus, pessoalmente já vi muitas Pombagiras ciganas fazendo o gesto cumprimentando congás e tronqueiras, atitude que sempre intrigou-nos e só agora encontramos alguma explicação. Perguntamos, se a maioria desconhece essas origens como se explica essa “coincidência”? Como já dissemos, a contraparte feminina de Shiva é Parvati, deusa de igual poder. Senhora do vigor sexual feminino, é representada pela pedra Ioni, que lembra a forma da genitália de uma mulher. Deusa de particular importância devido agregar em si a polaridade oposta indispensável para a Criação da vida material, invocam-na sob vários nomes como Uma (personificação da inacessibilidade do Himalaia), Gauri (de idêntico sentido à Uma), Jagan-Mata, Darga, Durga, Ganda, Bhairavi, Siama ou Kali. Mais conhecida na literatura como Kali ou Kali-Ma, “A Negra” ou “Mãe-Noite” é um dos avatares da deusa que teria vindo eliminar o demônio Ractavija, general dos Assuras (seres maléficos poderosos que sempre estão lutando contra os deuses) cujo embate teria sido quase impossível de vencer.

Empunhando armas em seus vários braços, enrolando-se em um colar de crânios dos demônios vencidos, dançando ferozmente sobre os cadáveres de seus inimigos, é a grande devoradora de homens, senhora de muitos sacrifícios, rainha de sete deusas que espalham epidemias (no Egito, Hátor é secundada por sete deusas que também seriam executoras do destino). Em tudo, Kali faz-nos lembrar da energia feminina dominada pelas Pombagiras, ainda mais quanto ao caráter nervoso – para não dizer violento – na defesa do bem. Lembraríamos também que toda Pombagira tem, por subordinados, sete Exus que prestam-lhe assistência sendo, por isso chamada de “mulher de sete maridos”. Na mitologia hindu, fruto do intenso amor de Shiva e Parvati nasce Ganesha, deus de cabeça de elefante – animal símbolo da sabedoria, senhor da fartura, da sorte, dos caminhos abertos, da felicidade e dos estudos. Figura bonachona, simpática, é o senhor dos intelectuais e protetor dos Vedas. A trindade pai, mãe e filho, item dos mitos arianos, encontra em Shiva-Parvati-Ganesha foco da mais intensa veneração em toda a Índia. Assim como nos cultos afro-brasileiros, o banho purificatório encontra nas sacratíssimas águas do Ganges, local de peregrinação a todo hinduísta, parada obrigatória para fazê-lo. O Ganges é o mais sagrado dos rios, nascido do céu a escorrer pelos cabelos de Shiva desde a encosta do Himalaia; de tão santo, quem banhar-se nele poderá saltar três encarnações à frente. Milhares de peregrinos amontoam-se para banhar-se esperando que as águas carreiem o peso de seus carmas e curem suas doenças, sob o odor acre de centenas de corpos cremados em fogueiras de sândalo cujas cinzas, levadas pela correnteza, permitem às almas dos mortos uma entrada feliz na vida após a morte. Como Jerusalém é a cidade-santa para três grandes religiões ou a cidade nigeriana de Ifé encontra o mesmo conceito para nós afro-brasileiros; Varanasi (antiga Benares) é a mais sagrada de todas as cidades para os hindus.

Nela residiu Shiva e foi ali que Buda fez seu primeiro sermão. Acreditam também que se alguém morrer nela não reencarnará mais. Para falarmos de Tantrismo, Tantra ou Tantra-Yoga será necessário despir-nos de séculos de repressão sexual para apreender-lhe sua filosofia. O corpo, na Índia, não está separado da alma ou é adverso a ela como aprendemos desde crianças: é um foco de energias espirituais manifestas que precisam estar equilibradas em seu ápice para promover boa saúde e felicidade. Para eles, o corpo é um templo vivo que deverá ser admirado consagrando-o aos deuses. Instrumento divino em sua própria definição, deverá ser a escola para todo homem e toda mulher que, aprendendo a conhecer seus recursos, dará serenidade à alma. É um modo de pensar tipicamente indiano, pois o Tantra não é uma doutrina nem uma religião. Ninguém poderá ser pleno se não tiver suas duas polaridades Shiva/Shakti afinizadas.

Em nossa cultura, aonde tenta-se implantar sérias dúvidas quanto ao desempenho sexual de cada indivíduo, o Tantra é sinônimo de pornografia. Nada disso. O Tantra não prega a promiscuidade, mas ensina aos parceiros a tentar ficar o máximo de tempo unidos, criando métodos, sorvendo a energia despreendida do companheiro de forma sublime. Infelizmente, a idéia de Tantra chegou, no início do século, a muitas seitas esotéricas por aqui passando a adotá-la sob o codinome de “magia sexual”, equivocadamente. Os cultos nessas seitas passaram a ter caráter orgiástico regados a muita droga pesada com fins de “expansão da mente”, distorcendo-se por completo a idéia central de Tantra de equilíbrio aos moldes indianos.

Observando-se fotos desses homens e mulheres ocidentais fascinados, bem como seus desenhos, vemos nesses “mestres” de caráter duvidoso como Austin Spare ou Crowley o desejo explícito da obsessão sexual, nas formas e cores típicas da distorção mental provocada pelo excesso de drogas autenticadas por comentários de contemporâneos que relatam os exageros oriundos dessas reuniões. Na Índia busca-se o encontro com o próprio Deus, vendo seu corpo como prolongamento da própria Criação; o outro a liberação total de amarras, sabe-se lá como.

Poucas doutrinas religiosas dedicaram-se tanto ao estudo dos sons e cores como formas de contato a outras dimensões, como no Hinduísmo. A emissão de vogais e sons não será um fenômeno puramente mecânico de nosso aparelho fonador. Aliás, som e música para nós serve apenas para diversão, animação de festinhas de aniversário, motivo de sair-se de casa para assistir um concerto ou uma boa ópera, para “reunir a tribo”. Observaram que a música, mais detalhadamente certas notas e sílabas pronunciadas demoradamente, produziriam respostas, feedbacks instantâneos em nosso psiquismo. Se voltarmos algumas páginas atrás, veremos que os egípcios já conheciam esse sistema considerando a palavra em si a materialização de heka (magia) criando o que os espíritas conhecem atualmente como formas-pensamento e o chinês como tulpas. Ignorantes ou não que sejamos, quem já não lacrimejou ouvindo o som de um violino ou de um piano? Quem, diante um susto, não gritou demoradamente? Quem já não percebeu que certas palavras despertam reações em nosso organismo como amor, tristeza, sentimentos diversos tendo na poesia sua grande ciência? Monossílabos como Ah, Ei, Ai, Ui, Buu nada traduziriam, mas entendemos sua mensagem na hora pronunciados por alguém? Os indianos passaram a usar esses sons, palavras ou sílabas observando quais eram as reações específicas em nosso organismo, criando estados de torpor, excitação, tranqüilidade. Mais ainda, viram que não apenas no aspecto psíquico eram capazes de modificar ânimos, mas também no aspecto orgânico passando a criar um tratamento médico à base desses mesmos sons. Estavam criados os mantras religiosos e a base da medicina indiana, especializada nesse aspecto, base para o moderno Reiki e outros tratamentos considerados “moderníssimos”, new age para nós, ocidentais. Recordamos que na Europa - em todos os países cristãos desde o Renascimento - houve o rompimento da religiosidade com a ciência pois a segunda ficara atrelada à primeira de tal forma que, se qualquer nova descoberta fosse feita “ferindo” os princípios e crendices do Cristianismo vigente à época, o cientista poderia receber a pena capital, excomungado junto com sua família. Tamanha barbáridade não aconteceu no Oriente onde jamais separou-se o mundo físico do espiritual, do orgânico ao psíquico. Essa flexibilidade somente agora, salvo idéias fundamentalistas “cristãs” - pretendendo impor Adão e Eva em nossos tempos como verdades inquestionáveis em detrimento às idéias evolutivas de Darwin - esperamos que cheguem até nós de forma límpida e cristalina para estudo às mentalidades dos adeptos do livre-pensamento. Novidade para nós é o comportamento dos jovens médicos quando alguém queixa-se de gastrite e problemas digestivos por exemplo, associar a doença ao acúmulo de contrariedades, sistema nervoso abalado, stress como supostas causas. Antes ignorar-se essas razões psíquicas/espirituais eram normais em nossa sistemática, pelo que a medicina indiana ayurvédica já utilizava esses critérios há milênios; crendo ser útil para nós, umbandistas, um pouco desse conhecimento, ao final desse capítulo incluiremos tabela saída em revista esotérica baseada nesses pontos, tornando-nos capazes de traduzir a mensagem de alguém que queixa-se de doenças, escondendo em seu interior as verdadeiras razões do aflorar desses males. Fazemos um adendo aqui, lembrando que o africano já fazia o mesmo (e nós, atualmente) no estudo milenar das várias probabilidades a ocorrer nos arquétipos dos filhos de cada Orixá. Leviandade, portanto, é repetir-se esses sons, preces, mantras mecanicamente porque aprendemos aqui ou acolá esquecendo-se da velha lei de ação e reação. Economizar-se recursos, usando-os apenas na hora certa, é produzir uma emissão magnética muito mais potente, porque jamais os recursos ditos mágicos ou mediúnicos, como prefere o espírita, não devem ser desperdiçados, vendidos como mercadoria, usados como bem lhe aprouver pelas conseqüências nefastas decorrentes de sua má utilização. Desgasta o material psíquico do próprio médium, invoca espíritos levianos ou obsessores, provoca aumento de carma negativo trazendo doenças futuras, crises, sofrimentos. Mexemos levianamente na Natureza esperando que ela não nos responda à altura. Ao sacerdote desonesto, ao mago negro (negativo), ao brincalhão que jura ser tudo uma grande brincadeira, lembramos a máxima africana aplicável em todos esses casos: “Não se barganha com Ifá, como se barganha com as coisas do mercado”.

Quem não sabe que pensamentos violentos produzem palavras violentas, criando a grande leva de hipertensos, cardíacos e doentes de alma grassando aos milhões em nossas ruas debatendo-se incontinenti? Toda vez ao comentamos isso, lembramo-nos ser toda a cultura de massa induzida pelas telenovelas assistidas desde quando somos crianças, ou nos açucarados folhetins disputados nas bancas de revistas pelas mulheres de todas as idades, criando o mito e a falsa idéia de vítimas, das inumeráveis cinderelas capazes da felicidade eterna ao final das histórias. Essa autopiedade induzida, levada a extremos por muitas pessoas em nossos círculos religiosos, incentivada através desse falso romantismo piegas irreal, alimenta muitas personalidades masoquistas, hipocondríacas entregando-se a queixumes em meses, anos a fio que, ao primeiro sinal de esclarecimento de nossas entidades, irão para outro círculo religioso prosseguir em sua interminável ladainha de criaturas incompreendidas. Com essa autodestruicão gradativa serão os doentes a lotar psiquiatras, gastroenterologistas, cardiologistas tentando remendar-lhes o corpo, mas nem sempre poderão fazê-lo com a alma. Para nós, serão as pessoas mais difíceis de lidar porque são escorregadias frente à cura e, naturalmente, culpam-nos (até com impropérios) de não resolver-lhes os problemas alimentados a fermento pelas suas mentes enfermiças, sempre fugindo ao menor sinal de melhora. Como sacerdotes ou médiuns umbandistas que somos, lembraremos do princípio natural da Matemática: para todo o problema há sua respectiva solução. Seja ela na medida necessária, no menor tempo possível, procurando-se evitar confrontos violentos. Esse, todavia, não é o ensinamento ministrado nos estimulantes meios de comunicação e círculos familiares, infelizmente. Eis da importância de nosso trabalho nesse tipo de saneamento espiritual das populações. Em todo tratamento espiritualista ou alternativo, a resposta virá à médio ou longo prazos. Sabemos que cor e som são filhos do mesmo princípio chamado freqüência e atuam em todos os seres vivos, dentro de suas limitações de captação. Tratamento conhecido como Cromoterapia, baseado na medicina mística indiana, ensina-nos a utilização de papéis celofane de várias cores, cristais, pedras preciosas, metais, luzes coloridas envolvendo doentes, copos de água a serem ingeridos, imantando-se locais, plantas ou quaisquer seres vivos com melhoras sensíveis. O mesmo acontece com os aromas, através das defumações, incensos e perfumes.

Vimos em nosso segundo trabalho, já citado anteriormente, como as plantas absorvem determinadas energias sendo possível liberá-las através de banhos, chás, volatizacão via queima, transformadas em pós na infinita série de meios de entrar-se em contato físico com elas para os mais diferentes fins. Extraídas as famosas essências aromáticas diretamente de folhas e flores, algumas até de origem animal como o almíscar, misturadas a outras substâncias com fins de conservação de seu frescor, borrifa-se suas moléculas pelos ambientes; sobre nossa pele, absorvidas pelos poros ou pelas nossas narinas, penetram em nossa corrente sangüínea atingindo em cheio determinados órgãos promovendo sua reenergizacão. Poderão modificar humores (aromas cítricos, remetendo-nos imediatamente à imagem de florestas calmantes), florais (alimentando idéias amorosas). Eis o motivo pelo qual alguns perfumes são escolhidos inconscientemente por nós correspondendo ao tipo de sentimento que nutrimos naquele instante, pelo nosso tipo próprio de personalidade, estudados como verdadeira ciência pelos hábeis perfumistas que promovem “profissionais”, lançamentos anuais aos grupos dos “românticos”, “desportivos”, “agressivos”, “calmos”. Esses padrões são observados pelos especialistas do ramo promovendo em nosso século imensas fortunas relacionadas ao mundo da moda. Nós, porém, travados a preconceitos religiosos, desconsideramos os incensos, defumações e perfumes como se tolices fossem de antigos povos já dizimados. Aos detratores dos rituais afro-brasileiros, deveriam ao menos dedicar seu tempo a estudar com seriedade tais fenômenos com menores entraves culturais. Despindo-se das amarras de que “só minha religião – ou ciência - salvará” poderiam enxergar a verdade sob véus tão tênues. Na Índia, bem como na China, a medicina subdivide o ser humano em certos grupos que mantém as mesmas características (entre os iorubás há o arquétipo concedido pelo Orixá) que dá-lhes o tipo físico, caráter, alterações prováveis, preferências alimentares e, em decorrência, as doenças. Especificamente no ser humano, esses três grupos básicos chamam-se doshas. Para o indiano, toda a matéria (Prakiti/Maya) também possui três qualidades básicas na Natureza: cada qualidade chama-se Guna, a saber: Tamas (a inércia), Rajas (a atividade), Sattva (a harmonia). TAMAS – Traduz-se como “apatia”, sinônimo de primordialidade, início, lentidão, preguiça, dispersão, caminho descendente. Símbolo do primevo, da virgindade anterior aos princípios, do que é ainda informe e disperso antes de definir forma. Sua cor simbólica é o preto. RAJAS – Traduz-se como “impureza”. É a guna das “paixões”, das “ações”, das atividades, do movimento predominante na natureza humana. Sua cor é aquela da poeira da terra: o vermelho. SATTVA – Traduz-se como “ser como deve ser”, sinônimo de bondade, pureza, harmonia, perfeição, equilíbrio, luz, sabedoria. Predominante nos seres angélicos, deuses (devas), criaturas dedicadas ao desenvolvimento dessas qualidades na humanidade e consigo mesmos. Sua cor representativa é o branco. Devemos parar em um adendo muito importante. Se pudermos (incluímos aqui também a Umbanda e o chamar de “coincidência”, o iorubá Candomblé) também subdivide a matéria nessas idênticas três cores, essas três essências básicas chamadas de Iwâ (“A Existência”, ou o branco), Âbá (“A Essência”, ou o preto) e Âxé (“A Realização”, ou o vermelho). De onde veio esse conhecimento entre ambos os povos? Da observação pura e simples? A Índia e o Egito teriam algum tipo de contato, depois repassando-se ao iorubá, ou vice-versa? Através da mediunidade, conceitos explicados pelos espíritos? Como saber ao certo? Sem respostas, alteraremos nosso interesse voltando-nos sobre a obra de Charles Godfrey Leland, especialista em assuntos ciganos e hindus, ex-presidente da Sociedade de Cultura Cigana sendo nosso principal subsídio a partir de agora.

Fala-nos Leland, entre outros autores, serem os ciganos exilados da casta dos párias (ou “intocáveis”) da Índia ou, ainda, foras-da-lei, cavaleiros da tribo ariana dos jãts que teriam sido expulsos através das guerras religiosas ocorridas entre os séculos 10 e 12. Em seu êxodo, sem rumo definido, reuniram-se às castas inferiores como a dos nats (formada por cantores e acrobatas) e os doms que são, segundo o autor, “uma raça aparentemente pré-ariana, que ainda pode ser encontrada na Índia e que vive na sujeira, come carniça, viola cadáveres, bebe excessivamente, sendo, em resumo, responsável por várias características desagradáveis dos ciganos europeus atuais”. Esse grupo heterogêneo, mas já reunido pelas origens comuns, chegou à Europa provavelmente entre os anos de 1300 a 1400 pois, ainda segundo o autor, “a suposta dispersão dos ciganos pela Europa data de 1417, quando um bando de 300 andarilhos nômades chegou à Alemanha na primeira etapa do que eles afirmam ter sido uma peregrinação de 50 anos imposta pelo rei da Hungria como castigo pela sua apostasia”. Leland narra que os ciganos já contavam essa mesma história, séculos antes, sobre sua fuga à Síria e ao Egito, quando consideravam ter sido renegados pelo Islão. Seja como for, sabiamente conseguiram obter passaportes “concedidos” pelo Papa, pelo imperador da Alemanha e por todos os governantes da Europa para peregrinarem e pedirem esmolas durante 50 anos permitindo-lhes acampar do lado de fora dos muros das cidades a que tinham acesso com esses documentos. Por sua condição de estrangeiros e sua facilidade em aprender novos idiomas, sobreviviam aonde quer que fossem pelo seu acervo de conhecimentos tribais de dança, canto, habilidade na arte dos metais, trato com cavalos, pela prática da necromancia indiana, quiromancia e roubo, quando “as oportunidades e o interesse público permitiam”. Esse último comentário faz parte da Introdução do livro do autor citado, escrito por Margery Silver em 1962. Esse caráter malandro, amoral, nômade, perigoso aos não ciganos cercaram-lhes com natural desconfiança por razões óbvias. A lei do instinto da sobrevivência obrigou-os, em países estrangeiros e hostis, ao comportamento típico daqueles cuja nação exilou-os por motivos políticos, religiosos ou escravagistas a vagarem pelo mundo sem um lar, sem uma renda certa, passando necessidades prementes. Encontramos a mesma atitude até hoje nos descendentes do negro brasileiro, trazido às turras a um país desconhecido, misturado a etnias inimigas em condições indignas, para não dizer torpes, forçando-os a desenvolver uma aparente humildade maliciosa, ao “corpo-mole” - já que não interessava tornar o senhorio rico em troca de uma ração miserável, condição essa que perdura até os nossos dias aonde espremem-se em favelas sem qualquer infra-estrutura, em “vilas”, “jardins” ou outros vilarejos batizados com nomes amenos para uma realidade tão deprimente. Essa maneira de protesto por saber que jamais ascenderão socialmente, materializa-se na figura ímpar de nosso Zé Pelintra, típico malandro ambientado na boemia carioca quando ainda vivia, que gostava de viver muito bem mas sem esforço. Conta-nos ainda Margery Silver, que não bastasse a exclusão imposta por todos os povos e invejados pelo seu talento como ferreiros e ourives, os ciganos foram alvo da lenda de terem sido eles os fabricantes dos pregos que prenderam Jesus na cruz tendo, por isso, recebido a maldição de vagar pelo mundo sem jamais ter uma pátria. Esse povo extraordinário não se deu por vencido, rebatendo essa imagem negativa com uma contralenda. Nos séculos 12 e 13, quando somente os ciganos tinham autorização para manufaturar objetos em metal, espalharam por toda a parte terem sido eles a fabricar os pregos do martírio do Cristo; porém, por piedade ao Mestre, fizeram um a menos prendendo seus pés com um único pino. Jesus, agradecido, deu-lhes a bênção de roubar o quanto quisessem e pudessem, sem pecado, a partir daí. Desde essa época, os crucifixos passaram a apresentar os pés da imagem presos por um único prego. Citamos essa lenda por retratar, à perfeição, a enorme capacidade obtida pelos ciganos na quase camaleônica arte de sobreviver, idealizados em seu ar maroto, livre, quase irresistíveis no imaginário popular, aliada à preservação quase secreta de seus costumes por tanto tempo. É desconhecida a verdadeira origem da palavra “cigano”. Entre as muitas versões correntes, chegamos à palavra grega athsinganos que remete à música que tocam como itinerantes ou, ainda, à chorihani que na língua cigana (romani) quer dizer “ave-feiticeira” (a tão comum cambaxirra, carriça ou corruíra) pelos seus modos tímidos, esgueirando-se pelas ramagens. Quem sabe, talvez pelo tom amorenado de suas penugens e olhos espertos, típicos de um cigano. Notável é a capacidade cigana de ser feliz, esquecendo-se de antigas mazelas. Expulsos da Índia, passando ao Afeganistão e Irão (Pérsia), metade dirigindo-se ao norte rumo às terras geladas da Rússia; a outra metade indo ao sul pela Síria, Turquia, Grécia, Hungria, Iugoslávia, Alemanha, Escócia, Inglaterra, Egito e Espanha, sempre escorraçados ou convivendo cercados de desconfiança; sofreram os revezes da Inquisição Católica que os perseguiu ferozmente; foram condenados à morte nos Países Baixos; degredados para a América, África e Ásia; escravos brancos na Romênia e Hungria; perseguidos e mortos nos horrores nazistas, nunca alimentaram ódios e rancor naquele conhecido ranço travestidos de vítimas como tantas vezes assistimos no discurso de povos por milênios a fio, mantendo suas chagas permanentemente abertas. Segundo o pesquisador Fernando Alves, em 1918 um menino pernambucano de nome José Pelintra da Silva Aguiar desembarcou no Rio de Janeiro logo aprendendo ali como viver de mulheres e do jogo de cartas chamado ronda. Morador do Morro da Providência, apelidado de Zé Pelintra, era um coordenador da vida boêmia da Lapa conhecendo a polícia local, prostitutas e seus frequentadores. Morreu aos quarenta anos por vingança de uma mulher, em um jogo de carteado. Acrescentamos aqui que, como apreciava vestir-se de branco da cabeça aos pés, chapéu mole, terno e bengala na maior elegância possível, recebeu também o apelido de “Doutor”, sendo assim invocado nos pontos de Umbanda. Passou-se trinta anos após sua morte quando começou a incorporar na Umbanda local de Pernambuco (chamado ali de Catimbó ou Jurema) como entidade e, a partir de 1972, passou a incorporar no Rio de Janeiro espalhando-se daí para todo o Brasil. É um povo desconfiado, mas cheio de esperança em seu pacífico modo de ser eivado de passionalidade, ganhando o difícil respeito no meio de todas as nações pela sua feitiçaria recolhida na passagem por tantos lugares diferentes (destacamos aqui a herança da magia indiana), cujo maior mérito foi preservá-las e disseminá-las por onde passavam. Os ciganos, como todos os povos de origem ariana, é dualista e maniqueísta em sua crença. Para eles há um deus único, senhor de toda a benevolência invocado como Dou-La ou Bel. Seu arquiinimigo chama-se Deng, senhor dos demônios, em eterna luta para suplantar o bem. Também são fatalistas, acreditando que nada poderá ser feito contra o destino (baji), aceitando-o com conformidade. Em sua sociedade, as mulheres assumem o sustento econômico de todo o grupo familiar e muitas ocupam cargos de rainhas, matriarcas (phury-day), tias-conselheiras (bibi), quando opinam com freqüência no comportamento do grupo, sendo somente elas as detentoras da capacidade de ler a sorte em todas as suas modalidades. Inspirados na literatura, muita gente crê serem as ciganas livres, soberanas, naquele arquétipo da dançarina de rua, libertária e anarquista, preconizado pelo romantismo. Eis uma inverdade sacramentada por tempos. Uma cigana casa-se cedo, com o noivo escolhido pelos pais desde o nascimento, sem qualquer tipo de experiência sexual anterior pois devem ser virgens. Não sabemos, contudo, como seria possível na noite de 30 de dezembro de 1916, o célebre staretz russo Rasputin ter passado uma noitada com “prostitutas ciganas”, se tal é considerado um tabu nesse povo. Já ouvimos, inúmeras vezes ditas pelas mais diferentes pessoas, que essas teriam ascendência cigana, fruto de amores ilegítimos.

Realmente, só hoje há casamentos entre ciganos e não-ciganos (gadjés), mas deverão passar pelo crivo da comunidade cigana e submeter-se aos seus parâmetros; toda transgressão a essas e muitas outras regras sujeitam-se à decisão do kaku durante os tribunais do grupo que, normalmente, são muito severos. Ninguém atreve-se a ir contra e receber suas punições, como a temida exclusão. Curiosamente, as mulheres poderão até exibir os seios mas nunca as pernas, pois são consideradas impuras da cintura para baixo. Profundamente patriarcal, “machista” aos parâmetros modernos, a sociedade cigana proíbe suas mulheres de cortarem os cabelos, sentarem-se à mesa com os homens, proibindo-lhes estudar e participar de escolas públicas.

Submissas, aceitam sua sorte com resignação tendo, como única liberdade, a permissão de perambular pelas ruas à procura de algum recurso ganho com a leitura da sorte e os costumeiros golpes aplicados aos gadjés costumando ter por início, em geral, um inocente perguntar de horas. Os costumes mudaram a tal ponto que muitas mulheres ciganas (diga-se algumas tribos) conseguem obter uma justa reivindicação aqui e acolá a muito custo, quebrando alguma regra como vir a estudar ou criar hábitos sedentários, residindo em luxuosas moradias mas sem, contudo, perder sua essência nos detalhes à volta. Alguns grupos passaram a adquirir imóveis com fins de investimento havendo cidades aonde reúnem-se grande número de membros (comenta-se que Cachoeirinha (RS) é um desses focos), afastando-se do tipo andarilho, roto, dançarino de ruas, vendedores de tachos de cobre e outros utensílios confeccionados pelos homens, costumes esses ensinados de pai para filho sem perder sua identidade cultural mas cada vez mais distante do tipo nômade. Espalhados pelo mundo, os ciganos subdividem-se em três grandes grupos unidos pela hereditariedade comum mas, nem por isso, cada um guardando suas características:

SINTI – concentrados na Alemanha. Há poucos no Brasil.

CALONS – Concentrados em Portugal e Espanha. Chegaram primeiro ao Brasil em 1574, deportados de Portugal. Aqui tornaram-se bandeirantes, vendedores de “ouro falso”, empregando-se como feitores de escravos nas minas de cana-de-açúcar entre outras funções.

ROMS – Vieram da Europa desde 1822, mas em grande número nas duas grandes guerras mundiais. É o grupo mais numeroso e apegado ao tradicionalismo, subdividindo-se em subgrupos: Kalderash – respeitosos da tradição, mantenedores da cultura cigana. Ainda as mulheres praticam as artes adivinhatórias e os homens são dedicados ao artesanato no metal.

Macuaias ou Matchuaias – As mulheres ainda praticam as artes adivinhatórias, mas os homens apenas entregam as propagandas (folhetos) nas ruas. Não usam tendas, mas hospedam-se em hotéis. Horahane – Parecidos com os Macuaias, são bons comerciantes. Alguns afastam-se das origens ciganas. São de origem turca. Lovarias – A maior parte concentrados na Hungria. Afastaram-se muito das tradições ciganas. São comerciantes de cavalos. Rudari ou Ladari – Originários da Romênia, Especializaram-se na ourivesaria e artesanato em madeira. Outros subgrupos menores: Kalute, Tchurata e Mordovaia. Relata-nos Leland, de um trecho extraído do jornal The Saint Jame’s Gazette de 1888, que os hindus e ciganos acreditariam na existência dos bhuts, merecendo todo um comentário. A necromancia, que é a invocação e comunicação com os mortos, é praticada na Índia pelos seus feiticeiros, lá chamados de Jadoo-Wallah , cuja atenção maior recai sobre aqueles espíritos que rondam aldeias e cemitérios ou aqueles especiais que cada indivíduo tem precisa ser “conciliado” (sic). Através de oferendas que consistem em bebidas alcoólicas e carne de porco (a carne de porco, explica-se, é uma das preferências gastronômicas dos indianos e, como são espíritos de mortos de seu povo, manterão os mesmos gostos), os bhuts são invocados para praticarem o bem ou o mal conforme a orientação que lhes dê o feiticeiro, muitas vezes regido pela ganância e perversidade. Os bhuts costumam ser exigentes, não perdoando esquecimentos de oferendas e promessas não cumpridas, algumas vezes rancorosos, detendo grande poder, mas passíveis de serem aplacados.

Para nós, umbandistas, os bhuts indianos nada mais são do que nossos tradicionalíssimos rabos-de-encruza, quiumbas, espíritos sem luz, que poderão ser direcionados exclusivamente para o bem ou para o mal, conforme a índole do sacerdote que o invoca. Melhor ainda, algumas entidades intitulando-se Exus que grassam nas casas ditas “quibandeiras”, no sentido que damos à palavra. O bhut é considerado um “espírito maligno”, perigoso de se lidar, e que “o povo ainda acredita nele, ciganos buscam suas boas-graças, honrando-o com ervas e fumaças”, crendo que se apresenta como um “rato irlandês”, conjurado nos buracos existentes nas árvores ou afastado nas correntezas a quem imploram ingenuamente, que “se dirija aos locais aonde é desejado” onde poderá ser homenageado, deixando em paz o cidadão honesto que esteja cansado dele” . O autor ainda menciona que o “cidadão” costuma “pagar muito bem” às ciganas para que eles sejam afastados. Nenhum conceito parece-nos novidade pois, também, muitos de nossos Exus (bem como outras entidades de Umbanda) “adotam” certos animais como “seus” utilizando-os no trabalhos que fazem em nossa proteção , escolhidos talvez pela sua maior sensibilidade em relação aos demais de sua espécie ou, quem sabe, drenando-lhes o acúmulo energético que dispõe realimentando seus espíritos ainda densos. Esses elementais criaram as histórias que cercam os gatos pretos das bruxas, cujos pêlos recolhidos são tão utilizados em magia; os cães negros ou morcegos das histórias de vampiros; corujas e todos os animais de hábitos noturnos, tão injustamente perseguidos pela população supersticiosa. Diga-se de passagem, sem tirar lá a sua pitada do preconceito europeu, quantas vezes assistimos em filmes de horror relacionado a vampiros exibidos em cinemas e televisões do mundo inteiro, ciganos como servos das forças trevosas envolvidos em salvar o caixão e proteger o Conde Drácula?

Afeitos a essas magias tão “umbandistas” ou “africanistas” se comparadas forem, é lógico que os ciganos sofreriam a intolerância da Europa encarquilhada nas amarras religiosas, mantidas sob controle no sussurro dos confessionários que centralizavam informações sob rédeas curtas nas aldeias ignorantes, carentes. Prosseguiram resistindo à chacota, ao medo, aos governos e sacerdotes, procurados por centenas quando “vendiam feitiços”, disseminando conhecimentos e simpatias unificando, com certeza sob a supervisão dos espíritos superiores, naquele solo banhado por guerras de xenófobos, a cultura dos povos do Oriente cujos tesouros traziam sob o mais estrito silêncio. O cigano é filho da Índia e lá ainda é o centro da magia positiva e negativa, preservadas por milênios pelo seu povo, cujos conquistadores não conseguiram minar-lhe a fé. Para quem não sabe, o cigano costuma fazer os típicos trabalhos de troca do tipo “tira-se daqui e põe-se ali”, aonde toda a sua comunidade cospe em uma caixa, desejando que todos os males ali fiquem imantados lançando-a depois em água corrente. Aliás, à semelhança da africana, a magia cigana trata do sistema de lançar-se aos ventos ou à água corrente determinados feitiços com fins de afastá-los das vítimas ou remetê-los a alguém ou grupo em especial. A maioria dos trabalhos de saúde por exemplo, são feitos enterrando-se “a doença” ou cuspindo-se em buracos de árvores que são imediatamente lacrados, sob orações em romani cujo ritmo segue uma rima, bem como a repetição de certa palavra várias vezes. Muitas das fórmulas recitadas por bruxas em histórias infantis baseiam-se nessa sistemática perpetuada pelos ciganos ou encontrada também nos ofós africanos; quem não conhece a célebre “Oração de Santa Catarina” ou “Das Almas Degoladas” tão repetidas em quase todos os livros de simpatia com o mesmo sistema? Vamos dar um exemplo para o leitor de como seria uma “reza forte” cigana: “Dor da minha cabeça Desça para meu peito Desça para meu ventre Desça para minhas pernas Desça das pernas para o chão Lá tu fiques Lá tu te enterres De lá tu não voltes.” Esse método de “enterrar” ou “lacrar” as doenças transferindo-as para o solo ou para um objeto é prática muito comum em todas as magias. Como meios utilizam-se de dentes, cabelos, animais secos torrados e triturados, ervas, urina, sal, ovos como substitutos de sacrifícios animais, sacrifício de galinhas, ervas várias, trabalhar-se com a terra pisada por alguém, sua sombra, alho e cebola como afastadores de maus espíritos e toda a sorte de magias semelhantes àquelas ensinadas por nossos Pretos-Velhos durante as sessões de Umbanda, citadas também na magia africana e repetidas exaustivamente nos populares livros de simpatias, já que muitas delas apresentam origem nos costumes trazidos pelos colonizadores europeus e já entranhados no folclore popular onde iniciados podem reconhecer-lhe os fundamentos ali contidos com correção. Os tambores, usados em quase todas as cerimônias religiosas de todos os povos, também são usados pelos ciganos e preparados antes de sua utilização cujos detalhes omitiremos nesse trabalho mas que poderão ser encontrados na obra de Leland. O mesmo autor comenta-nos, nas páginas 304 e 305 um incrível relato do uso de búzios no Egito como jogo de adivinhação que teria assistido em sua época, sendo de uso corriqueiro. Considerando-se os grifos nossos, conta-nos: “Diante dela, no chão, havia um quadrado de fazenda com algumas conchas. De vez em quando, um egípcio pertencente a alguma das classes mais baixas parava e fazia uma consulta prévia . Ela era uma adivinha e, pelas posições que as conchas tomavam quando atiradas sobre o pano, predizia o que ia acontecer.” E, mais adiante: “E todo o procedimento era semelhante ao egípcio antigo, como também caldeu, pois a mulher era uma Rhagarin, cigana, e, quando se sentava para fazer suas predições, sentava-se como faziam na antigüidade, lançando conchas para conhecer os auspícios, era como se fossem atiradas lanças, que seriam amaldiçoadas por Israel”. Ora, o autor não cita a palavra búzios mas afirma serem conchas, ficando explícito que eram jogadas da mesma maneira que o africano conhece com o nome de Jogo de Ifá. Que o mesmo já era conhecido pelos egípcios e caldeus mais antigos e “amaldiçoado por Israel” que, como já comentamos, centralizaram na figura de Moisés e patriarcas a capacidade de “falar com Deus” (os patriarcas podiam “profetizar”, ter visões, falar com anjos e enviados de Deus, fazer certos rituais) proibindo a prática mediúnica entre seu povo para maior domínio das massas, no rigor da lei mosaica, como se isso fosse possível na prática!

O nosso costume de utilizar firmadores magnéticos com ponteiras, não é de todo desconhecido pelo povo cigano. Utilizam-se de punhais cravados sobre o tampo de uma mesa, em árvores, sobre um papel com orações. Em suma, em tudo semelhante aos trabalhos de nossos terreiros com nossas tradicionais ponteiras de aço, pregos, alfinetes, sendo esses últimos muito utilizados pelas entidades representantes do Povo Cigano em nossas giras quando nós, sempre incrédulos, teimamos em não ver tantas provas das mais cabais provas da sobrevivência da alma após a morte. Além de tudo, os ciganos são hábeis observadores. O enxofre é associado pelos alquímicos europeus e árabes como símbolo do fogo purificatório ou infernal pela sua cor amarela e propriedades desinfetantes, como citado em Jó 18:15. Para ser punida e purificada, Sodoma viu-se coberta por uma chuva de enxofre expulsando a força maléfica que viu-se “banida da terra” (Jó 18). Curiosamente, na Revista SUPERINTERESSANTE de Novembro de 98, página 30, explica-se porque choramos ao cortar cebolas, pelas mesmas conterem compostos de enxofre voláteis irritantes à córnea, provocando lágrimas para limpá-la. Assim os práticos observaram, desde a mais remota antigüidade, que tanto a cebola (quiçá o alho) teriam a propriedade de afastar certos espíritos trevosos e suas forças sem saberem que tal propriedade devia-se à presença de enxofre!

Notaram haver espíritos na Natureza e aprenderam como contentá-los ou invocá-los quando perambulavam em bosques, matas, beira de lagoas. Conhecem também o valor do redemoinho magnético existente nas encruzilhadas e a antiga tradição por nós conhecida de nunca voltar-se para trás após uma invocação nesses locais. Sabem também que as cores das “fadas” ou Vilas (espíritos da Natureza presentes em vários reinos) eram o branco, vermelho e preto que valeu-nos um comentário ainda nesse capítulo. Outras observações importantes também merecem nossa consideração: à semelhança do iorubá, a lesma é considerada “gado” já que possui chifres. Para a religião africana, o caracol chamado ibí é o verdadeiro quatro-pés a ser sacrificado a Oxalá, em vez de outros animais de sangue quente. Para o cigano, a lesma ou o caracol também são símbolos da voluptuosidade devido as características de seu ato sexual. O cigano sabe ser a mediunidade parcialmente herdada e adquirida, sob treinamento. O mesmo crê o Espiritismo e o Africanismo, entre outras religiões que crêem na necromancia. As fases lunares, à semelhança da Umbanda, é fator predominante em muitos rituais mágicos. As doenças sempre terão uma origem espiritual. Poderão ocorrer pela presença de um espírito maligno que deverá ser afastado, na crença cigana. Nós consideramos também o fator cármico.

Costumam entregar oferendas e “trabalhos” em encruzilhadas. A origem desse costume remonta ao culto de Shiva ou à Hécate grega, essa última senhora desses locais sagrados e padroeira das feiticeiras. Com certeza, haverá costumes semelhantes em outros povos em todo o globo.

Crença nos Exus (por eles chamados de bhuts), elementais (Vilas) e espíritos guardiães da Natureza. Trabalham com eles pelas mais diferentes razões. Usam fios de cabelo, unhas, terra, sangue, saliva, urina e muitos outros elementos já sedimentados na magia de Umbanda, africanista e popular. Punhais como firmadores magnéticos. O mesmo fazem com machados, alguns enterrados em árvores. Árvores e animais merecedores de especial veneração. Há preferência por animais de pelagem negra pois esses teriam “uma mediunidade mais aguçada”.

Nós amarrados em magia para “trancar” eventos. Orações semelhantes às africanas para feitura de ritos. Trituração de vários elementos, cujo magnetismo próprio servirá para execução de feitiços benéficos ou maléficos. Semelhante ao emprego dado pelos africanos. Banhos propiciatórios ou curativos, uso de “fumaças” (defumações ou incensos), amuletos, talismãs. Os ciganos conhecem a adivinhação por cebolas. Lembra-nos seu uso no Candomblé. Uso do esborrifo de água para purificação. Fazem diversos tipos de sacrifícios, inclusive o animal.

Conhecem substitutos para o sangue animal. Conhecem o uso das cores e detestam o preto.

Nenhum cigano veste-se predominantemente nessa cor pois “atrairia o azar”. O vermelho é a cor das paixões e sempre será poderoso talismã quando achar-se um objeto, fio, fita nessa cor.

O amarelo é símbolo da riqueza, ainda mais quando o objeto estiver flutuando na água. O branco, paz e reconciliação. O uso das cores lembra-nos em muito àqueles que consagramos aos Orixás africanos ou nossos guias de Umbanda (inclusive Exus). Uso de objetos de cera e agulhas cravadas nele, como aparece no Vodu haitiano. Uso e excelente conhecimento de endereços vibratórios. Hábito de lançar à terra as primeiras gotas do que se bebe, lembrando-nos o costume africano de verter líquidos em homenagem aos ancestrais e Orixás. Para os ciganos, é uma homenagem a Wodna Zena ou Nivashi, senhora das águas. Uso de círculos riscados como protetores contra feitiçarias. Aparecem muito na Umbanda, por influência jeje, em seus pontos riscados. Acreditam que os objetos de estimação de alguém fique impregnado com o “espírito da pessoa” (para nós seria a energia vital, bioenergia). Eis o princípio da imantação e do próprio endereço-vibratório. Sabem que para fazer-se magia negativa é necessário o uso do sangue, do sofrimento da vítima ou do mago, fome e toda a sorte de abstinência dos instintos naturais. Iremos nos abster de muito mais itens como a citação do uso de sapos em magia, enterrar-se oferendas para tornar um local propício à felicidade, os famosos golpes do “bilhete de loteria” que os ciganos de 1870/1890 conheciam tão bem, quais são os espíritos da Natureza reverenciados pelos ciganos, não sendo oportuno ao nosso trabalho cujo fim é trazer uma variedade de assuntos para tecermos comentários finais. Ao curioso ou apaixonado pela cultura cigana recomendamos a vasta bibliografia cujos autores abordam com seriedade o tema, criteriosos na busca de subsídios, recolhimento de relatos e convívio com a cultura como, por exemplo, fez Leland durante vinte anos. Em muitas capitais de nosso país há centros de cultura cigana cujo intercâmbio, com certeza, valerá a pena. Por fim, o grande encontro religioso cigano realiza-se no Sul da França em Saintes-Maries-de-la-Mer, nos dias 24 e 25 de maio cuja romaria leva-os ao túmulo de Santa Sara, sua grande padroeira, serviçal de pele negra de Maria Jacobé (irmã de Virgem Maria) e de Maria Salomé (mãe de Tiago Maior e de João, apóstolos de Jesus) que merece, em todas as partes do mundo, a centralização de fé desse povo admirável.